Confira as versões dos vídeos com audiodescrição
aqui
JAIRO MARQUES
DE SÃO PAULO
Há pouco mais de dois meses, quatro peludos norte-americanos da raça labrador, sendo três deles irmãos, desembarcaram no Brasil com nobres missões: guiar com segurança os passos de quatro pessoas com deficiência visual e substituir os velhos parceiros do quarteto, já idosos, com idade de se aposentar.
Por mais que se discuta a importância do cão-guia no Brasil, a realidade ainda é de dependência de iniciativas estrangeiras para o oferecimento desse que é um instrumento fundamental de inclusão e mais autonomia para os cegos.
Dos estimados extraoficialmente pouco mais de 150 cães-guias abrindo caminhos pelas ruas e calçadas nacionais, 80% deles vêm de parcerias de instituições brasileiras com tradicionais escolas de treinamento dos EUA e da Europa, o que implica gastos de cerca de R$ 35 mil com a logística de fazer o bicho chegar até aqui.
"Não se paga pelo cão em si. O custo que temos é do deslocamento até os EUA, a acomodação por lá e de despesas básicas. Temos também que arcar, quando necessário, gastos em veterinários e treinamentos de aperfeiçoamento", diz Thays Martinez, presidente do Instituto Íris, que também é cega e usuária de cão-guia.
A fila por um "cão importado" no instituto, o mais tradicional do país de apoio aos cegos, chega a 3.000 pessoas, com espera de até três anos para atendimento. Comparado ao universo de pessoas com cegueira total no país –600 mil–, parece até pouco.
Os quatro mais recentes cães gringos que estão circulando por São Paulo são Wayne, Valen, Rudy –todos irmãos– e Indy. Eles vieram da escola Leader Dogs for the Blind, de Michigan (EUA), após passarem por uma série de testes e treinamentos que inclui uma temporada com uma "família socializadora", que apresenta aos bichos as mais diversas situações cotidianas, como ir ao cinema ou a uma festa.
Os contemplados com os fiéis parceiros para conduzi-los ao trabalho e na vida social são o casal Genival Santos, 37, advogado, e Kátia Antunes, 33, analista, tutores de Wayne e Valen, respectivamente; o advogado Marcelo Panico, 47, que comanda Rudy, e a funcionária pública Liana Conrado, 62, tutora de Indy.
O grupo brasileiro ficou nos EUA por 21 dias, tempo menor que os tradicionais 30 dias de treinamento, uma vez que todas as pessoas já tinham experiências de comandar o cachorro que "abre alas".
PRIMEIRO ENCONTRO
"Tenho a impressão de que quando o cão é apresentado para a gente, ele sabe que seremos seus tutores e é conosco que ele terá uma missão. Eles ficam tremendamente eufóricos. É uma sensação que não sei descrever", diz Genival.
O primeiro encontro entre os cegos e os cães-guia só ocorre depois de quatro ou cinco dias de treinamentos técnicos, palestras, dicas de segurança e de como tratar o animal. Depois de apresentados, eles não se largam mais e passam a dormir no mesmo alojamento.
Antes de virem cumprir suas missões no Brasil, os cães tiveram um último encontro com as famílias que os criaram por cerca de um ano. Depois de aposentados, caso o usuário não queira ou não possa mantê-lo, os bichos podem voltar a essas famílias, se elas desejarem.
| Instituto Iris/Divulgação | |
|
O advogado Marcelo Panico, 47, com um dos filhotes que será treinado para ser cão-guia, no centro de treinamento em Michigan |
"O Valen foi criado em uma área rural. Já é a sétima a vez que a família que tratou dele, que morava a 16 horas de carro de onde estávamos, faz esse tipo de ação. Ficaram bem emocionados na despedida, mas entendem perfeitamente que o cão foi criado para a finalidade de auxiliar outra pessoa", declara Kátia.
O advogado Marcelo Panico diz que encontrar Rudy pela primeira vez foi uma sensação "muito gostosa". "Embora eu já tivesse vivido com o Harley [seu antigo cão, agora aposentado] esse momento, a reação é sempre inédita, porque cada cão é um cão. Eu o recebi com o máximo de carinho e de respeito, e ele foi maravilhoso comigo".
De acordo com o treinador de cães Moisés Vieira Jr., 52, um dos mais experientes em atuação no Brasil, o primeiro encontro entre o tutor e seu futuro guia tem uma importância estratégica e não apenas simbólica.
"Todo o momento é criado para que o cão mantenha-se focado na pessoa que irá guiar dali para a frente. É uma situação controlada, num ambiente controlado. O momento é especial e não deve haver interferência de ninguém. Só quem se dirige ao cão é o usuário. Uma grande conexão entre os dois começa a partir dali", diz Moisés, que trabalha na área há 20 anos.
O VOO
Nenhum sobressalto aconteceu nas dez horas e meia de voo com os quatro cães na volta do grupo ao Brasil. Os bichos ficaram deitados aos pés de seus tutores e, não fossem tão fofos, não chamariam a atenção de ninguém.
| Instituto Iris/Divulgação | |
|
Genivaldo e Kátia treinam com Wayne e Valen, seus novos cães-guia, como será voar de avião com eles |
Antes do embarque, o cão passa por uma mudança de rotina que implica comer menos do que está acostumado e ter acesso ao "banheiro" por mais vezes. Eles são preparados, assim, para ficar por um longo período sem precisar fazer suas necessidades.
Em alguns aeroportos do mundo, como o de Guarulhos (SP), por exemplo, logo na rampa de desembarque há uma espécie de "banheiro canino" para que os peludos se aliviem assim que saem das aeronaves.
Porém, diferentemente dos lugares de alívio canino em aeroportos dos EUA, no Brasil não há um amplo espaço, com grama artificial, para dar mais conforto aos cães. Também não há pia, papel, toalha e sabonete para que os tutores façam a higiene das mãos.