A rejeição das contas da presidente Dilma Rousseff no exercício de 2014 pelo Tribunal de Contas da União (TCU) pode se tornar um marco para que as manobras orçamentárias cheguem ao fim e os gestores sejam responsabilizados. Os artifícios desse tipo não constituem novidade. Porém, evoluíram tanto em maneiras quanto em quantidades e valores ao longo do tempo, passando da contabilidade criativa às “pedaladas fiscais”.
A partir de 2012, muito se falou que sobre procedimentos de “contabilidade criativa” que o governo realizou para esconder a expansão da despesa pública, do déficit e da dívida governamental.
De acordo com o consultor legislativo do Senado, Marcos Mendes, o termo “contabilidade criativa envolve dois conceitos importantes: “resultado primário” e “dívida líquida do setor público”. “É no uso e manipulação desses conceitos que se abrem brechas para a contabilidade criativa”.
As operações de contabilidade criativa permitem a expansão dos gastos e da dívida sem que se afete o resultado primário e a dívida líquida. É o caso do pagamento de dividendos ao Tesouro por empresas que estão fora do conceito de setor público, antecipação de receitas futuras e de empréstimos a empresas públicas que estão fora do conceito de setor público por meio de emissão de títulos.
Outra forma de manobrar o orçamento para obter resultados fiscais melhores é o adiamento de desembolsos, criando-se “restos a pagar”. É um detalhe importante do cálculo do resultado primário o fato de que é feito no “conceito de caixa”. São considerados nos cálculos apenas os despesas efetivamente pagas e as receitas efetivamente recebidas dentro do intervalo de tempo para o qual se está calculando o resultado. Há anos o TCU chama os restos a pagar de “orçamento paralelo”.
Dessa forma, se o governo comprar material de escritório no mês de dezembro de 2013, e o pagamento desse material for realizado apenas no mês de janeiro de 2014, essa despesa não entra no cálculo do resultado primário de 2013, e sim no cálculo para 2014.
No final de 2013 e início de 2014, o Contas Abertas percebeu um volume muito elevado de restos de restos a pagar processados, ou seja, recursos que haviam ficado literalmente na boca do caixa. Assim, esse tipo de “restos” somou R$ 33,5 bilhões inscritos em 2014. Comparativamente ao ano anterior, o crescimento verificado foi de 27%.
Conceitualmente, os restos a pagar processados representam as despesas públicas liquidadas, ou seja, nas quais o serviço que deu origem a esse gasto já foi efetuado e reconhecido pelo ordenador de despesas, faltando, apenas, o desembolso efetivo do dinheiro (pagamento).
Assim, para o Contas Abertas ficou clara a pretensão do governo de inflar o resultado primário de 2013, adiando pagamentos relativos a um mês ou a um exercício específico, o que posteriormente ficou conhecido como “pedaladas fiscais”. No dia 17 de janeiro do ano passado, a entidade encaminhou denúncia ao Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União, com o intuito de que a Corte de Contas pudesse quantificar o real superávit primário de 2013 e tomar as medidas cabíveis em relação às manobras orçamentárias que o governo federal realizou no final de 2013.
No início de 2014, os dados não chamaram a atenção das autoridades. Em junho daquele ano, no entanto, as “pedaladas” atingiram o ápice quando a Caixa bancou com recursos próprios o Bolsa Família, o Seguro Desemprego e o Abono Salarial. O Banco do Brasil fez o mesmo para equalizar as taxas de juros do financiamento agrícola. Para o FGTS sobrou arcar com o Minha Casa, Minha Vida enquanto o BNDES cobria custos do Programa de Sustentação de Investimento. A Caixa esperou seis meses para ser ressarcida em R$ 1,7 bilhão, e só recebeu quando o assunto se tornou público.
No final de agosto do ano passado, o próprio Contas Abertas foi a primeira entidade a trazer a público os documentos que demonstravam que a Caixa Econômica Federal (CEF) reclama dos repasses insuficientes do governo federal para atender programas sociais como o Seguro Desemprego e o Bolsa Família. O que comprovou que a descoberta realizado pelo Contas Abertas no início do ano, não se limitou apenas aos investimentos federais e chegou, também, aos programas sociais.
Ofícios da CEF foram encaminhados à Câmara de Arbitragem da Advocacia-Geral da União (AGU), que avalia a admissibilidade dos pedidos de resolução de conflitos, por meio de conciliação quando estabelecida controvérsia de natureza jurídica entre órgãos e entidades da Administração Federal. Nos documentos, a Caixa apontava que os repasses para o pagamento do Seguro-Desemprego e do Abono Salarial estão sendo realizados de “forma intempestiva e em volume insuficiente”.
Apesar do Contas Abertas ter sido a primeira entidade a denunciar as pedaladas, incluindo o abrupto crescimento dos restos a pagar, o atraso nos repasses a estados e municípios e a enxurrada de ordens bancárias emitidas nos últimos dias do ano para só serem sacadas no exercício seguinte, foi o competente procurador do Ministério Público de Contas junto ao TCU, Júlio Marcelo de Oliveira, que provocou a Corte de Contas que em abril tendo como mote o fato dos bancos estarem financiando o Estado, o que é proibido pela Lei de Responsabilidade Fiscal. Relatório do TCU estimou em R$ 40 bilhões o montante das pedaladas via bancos públicos.
A decisão do TCU de rejeitar as contas de 2014 confirmou os valores das pedaladas, mas também apontou que o total das distorções chegou à R$ 106 bilhões. A contabilização também apontou o não registro de dívidas contraídas e omissão de despesas primárias. Outro ponto a ser destacado é o fato de 2014 ter sido ano eleitoral.
Evolução
No governo federal, em vários momentos o fluxo de caixa foi administrado com a postergação de pagamentos. Na década de 90, por exemplo, os salários dos funcionários públicos foram pagos às vezes dentro do mês e em outras tantas nos primeiros dias do mês subsequente. A legislação era alterada conforme as conveniências do Tesouro.
No final dos anos 90, para o país cumprir as metas do Fundo Monetário Internacional, surgiram os primeiros os chamados restos a pagar, compromissos assumidos em um ano, mas pagos em exercícios seguintes. A moda pegou. Em 2002, já com a Lei de Responsabilidade Fiscal em vigor, eram cerca de R$ 25 bilhões. Em 2014, somaram R$ 227,8 bilhões.
Julgamento
Ao rejeitar as contas da presidente, o relator Augusto Nardes, apontou cenário de desgovernança fiscal. O Plenário destacou o fato do julgamento ser histórico. “Após exames das contrarrazões apresentadas pela Presidência da República, verificou-se que foram afrontados de forma significativa, além de artigos específicos, princípios básicos da Lei de Responsabilidade Fiscal”, apontou Nardes. O ministro ainda afirmou que tais fatos possuem conexão singular com os resultados da política fiscal de 2014.
Dyelle Menezes
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