'Acompanhamento dos gastos no Brasil está amarrado a lógica de 40 anos atrás', afirma Florência Ferrer em entrevista
Enquanto o governo luta, sem muito sucesso, para manter prazos de obras do PAC e dos estádios para a Copa do Mundo, e tribunais de contas atrapalham seus projetos vasculhando contratos em busca de irregularidades ou superfaturamento, a socióloga argentina Florência Ferrer se dedica a uma batalha paralela. "É preciso repensar o modo de controlar e fiscalizar os gastos públicos no Brasil", diz ela. Especialista em gestão eletrônica e conhecedora dos sistemas de fiscalização de países europeus, dos Estados Unidos, do Canadá, ela considera os sistemas brasileiros caros e complicados e acha que poderiam ser menos custosos e mais eficazes. E antes que alguém estranhe ela esclarece: "Ninguém está falando em eliminar ou restringir controles. Ao contrário, trata-se de modernizar, de fortalecê-los, para que funcionem bem".
A consultora é figura familiar nos encontros nacionais de secretários de Gestão e Planejamento dos Estados, onde se discutem temas como gestão eletrônica e mais diálogo entre os Poderes. Na esfera federal, o Ministério do Planejamento criou em março uma "Agenda Comum de Gestão Pública", em que definiu com os secretários dez eixos para melhorar esses processos. Ainda assim, Florência Ferrer não entende que não exista ainda um sistema nacional de indicadores de preços detalhado, disponível na internet, para definir custos e eliminar superfaturamentos. Nesta entrevista ao Estado, ela adverte: "Em muitos casos o acompanhamento dos gastos no Brasil está amarrado a uma lógica de 40 anos atrás, enquanto os processos de corrupção se modernizam rapidamente".
A sra. diz que a fiscalização dos gastos públicos no País é burocrática, gasta muitos recursos e é ineficiente. Por quê?
Os mecanismos de controle no Brasil estão amarrados a uma lógica de 40 anos atrás, são praticamente os mesmos. Em muitos órgãos de controle, pelo País afora, ainda se vive demais do papel, enormes processos vêm e vão, empilham-se assinaturas. Há gente demais envolvida. A tecnologia de informação fez uma revolução nessa área mas a resistência à gestão eletrônica ainda é forte. E os atos de corrupção não param de se modernizar. É preciso repensar esses processos.
Num país tão marcado pela corrupção, por superfaturamento e outras irregularidades, não é um equívoco atacar as formas de controle?
Não se está falando de enfraquecer controles. Ao contrário, de fortalecê-los, para que funcionem bem.
De que forma?
Vamos a exemplos práticos. Um projeto é aprovado e é preciso fazer compras públicas para ele. A autoridade que vai gastar necessita então de parâmetros, indicadores, sem os quais nem ela nem o fiscal saberão se o preço está adequado. Mas esses indicadores quase não existem na prática diária. Deveriam ser de uso fácil, tanto os nacionais como os locais, para se analisar compras, contratação de mão de obra, de frotas, de merenda escolar, seja o que for. Reduziria em muito o superfaturamento, que é tão comum.
Daria muito trabalho produzir isso?
Na área privada, novos processos de tecnologia eletrônica são assimilados rapidamente. Bancos, por exemplo, fazem seus controles de gastos internos criando planilhas do que se chama "desvio padrão". É um amplo sistema de informações, baseado em um mix de Big Data, Google ou nota fiscal eletrônica. Se um dado fica fora dos índices, o sistema dá um alerta. Em grandes empresas privadas isso já é rotina. A gestão eletrônica permite, por exemplo, que no governo dos EUA uma enorme quantidade de gastos seja acompanhada por uma equipe pequena, de uns 30 funcionários.
O que mais poderia ser melhorado?
O diálogo entre as etapas da gestão e do controle. Muitas vezes ficam todos de olho em uma licitação, e o ato de corrupção já aconteceu lá atrás, quando uma escola, por exemplo, pediu verba para 5.000 cadernos e só precisaria de mil. Ou seja, a corrupção está na decisão política de autorizar o gasto - nada a ver com a análise de um tribunal. A falta de diálogo entre Poderes também atrapalha. Há casos em que a autoridade é proibida de gastar, para não transgredir a Lei de Responsabilidade Fiscal, e um juiz a obriga a gastar, dando um aumento de salário a funcionários.
Onde isso aconteceu?
Em Minas Gerais, há algum tempo atrás, envolvendo gastos com professores. A secretaria de Gestão, Renata Vilhena, ficou entre ser punida por improbidade - se autorizasse despesas com pessoal desrespeitaria a LRF - ou por desacato à autoridade do juiz. Ela conseguiu negociar um acordo que autorizava o aumento dos professores, vinculando-o ao aumento da arrecadação.
Órgãos de controle são às vezes cobrados por atrasar obras com suas exigências. Como evitar isso?
Esse problema não é do tribunal, que está fazendo seu trabalho. O que se pode fazer é imitar outros países onde fiscais acompanham um projeto desde seu surgimento na área de gestão. Quando termina a elaboração, o trabalho de fiscalização praticamente termina junto. É um fator a menos de atraso da obra.
A sra. é contrária à suspensão do uso dos cartões eletrônicos nos gastos públicos. Por quê?
Na época do "escândalo da tapioca", em 2008, a sociedade e a mídia entenderam o uso do cartão como um privilégio. O governo decidiu então cancelá-los, trocar por dinheiro vivo. Ora, o cartão eletrônico é uma garantia de controle de quem gastou, quando, onde, no quê. Acabar com ele foi um erro.
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