segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Nas asas do avião



céu de Brasília habita meus sonhos desde que conheci a cidade – lá se vão algumas décadas. Mas foi numa música com esse tema e nome, dos mineiros Toninho Horta e Fernando Brant, que compreendi a dimensão poética e existencial de tudo aquilo: “Nada existe como o azul sem manchas/ do céu do Planalto Central/ e o horizonte imenso aberto/ sugerindo mil direções/ e eu nem quero saber se foi bebedeira louca ou lucidez...”.
A parte em que eles falam em voar nas asas do avião, a própria cidade, eu nunca tive coragem de praticar, pelo medo visceral de helicóptero. Mas cada vez que chego aqui por cima consigo mais e mais alcançar aquela sensação. Algumas vezes o voo entra por Ceilândia, Taguatinga. Outras, pelo Noroeste, Parque Nacional, em um giro que alcança o sul e a cabeceira da pista. Por fim, há a entrada por São Sebastião, Jardim Botânico, com mais zona rural e menos cidades periféricas no caminho.
Em todas elas, a monumentalidade do desenho e das obras artísticas e arquitetônicas sobressai em meio à planura, como num vislumbre de sonho ou visão profética. Da Esplanada dos Ministérios, pontuada pelo Congresso com ares de portal entre dimensões, à Ponte JK, com sua brincadeira de pedrinhas a saltitar n’água. Dos braços esparramados do Lago Paranoá aos conglomerados de áreas verdes que se espalham em todas as direções.
E, em volta de tudo, aglomerados urbanos, extensas vilas de pobreza desbotada em monótona falta de cor.  
Horizontalidade que achata e iguala o menos igual, pelo que se depreende do projeto democrático elitizado à força pela realidade crua. A quebrar a lógica rígida das volumetrias que imperam nas asas do avião, um paredão qual Manhattan candanga, Águas Claras, a gritar visualmente que nunca deixará de arranhar o céu com os mais longos tentáculos.
Da Torre de TV Digital, a imponente Flor do Cerrado, toda essa indagação se exclama ao nosso olhar: afinal, onde erramos, onde acertamos? Nossa cidade planejada, aos pés de novos dilemas, como se tem colocado desde o longínquo sonho de Dom Bosco? O que fazer com tamanha grandeza, para onde ir com a riqueza que erigimos e acumulamos? Perguntam os olhos e as consciências, intrigados, emudecidos, diante dos destinos e dos desatinos que nos tentam, qual demônio no deserto: tudo isso ali embaixo será teu, se te ajoelhares e me adorares.
Que voz é esta que ora sibila rastejante, ora sussurra no colo da brisa, ora ainda uiva em desmandos e implacáveis comandos. Será a voz de um final inexorável, o sentido do país sem futuro, do povo sem salvação? Ou será a palavra luz, a sobreviver quando tudo desmorona, esboroa, afunda nas profundezas escuras do lago? Entre uma e outra, quantas verdades esvoaçam nas asas do avião com o qual o arquiteto e o urbanista imaginaram o cadinho onde nasce a nação. É tempo de cada um escolher a palavra a proferir com a boca e o coração.


FONTE: http://vejabrasil.abril.com.br/brasilia/materia/nas-asas-do-aviao-1533

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