terça-feira, 25 de março de 2014

DF: O socorro está em perigo. Samu pede socorro


Dinheiro que deveria abastecer exclusivamente o Samu foi reservado para pagar testes de gravidez, equipamentos de centro cirúrgico e curso de inglêsAmbulância do Samu: somente para emergências (Foto: Michael Melo).

Popularmente conhecido como Samu, o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência tem fama de ser eficiente. Em situações como a de infarto, queimadura grave e afogamento, pede-se ajuda pelo 192. Na maioria dos casos, a ambulância chega de imediato, às vezes em poucos minutos. Entre 2012 e 2013 foram realizados 158 239 procedimentos a bordo de 38 viaturas. Porém, enquanto enfermeiros, motoristas e médicos se arriscam nas ruas para salvar vidas, gestores do programa cometem erros que indicam, no mínimo, uma trapalhada com o dinheiro público. Do ponto de vista técnico, houve uma bizarra tentativa de desvio das verbas do programa. ...

Documentos a que VEJA BRASÍLIA teve acesso mostram que as autoridades responsáveis pelo Samu reservaram recursos para despesas incompatíveis com os serviços realizados em uma ambulância. No caso mais evidente, o governo tentou gastar 900 000 reais em um curso de inglês para os funcionários. O objetivo seria treinar o pessoal para atender estrangeiros durante a Copa do Mundo. A ideia se mostrou tão absurda que o governo anunciou seu cancelamento assim que foi procurado pela reportagem. O argumento foi que eram esperados 800 alunos e só apareceram quarenta. Nesse caso, vale uma pergunta: por que as autoridades não fizeram antes uma pesquisa para saber quantos servidores tinham interesse em aprender a língua? 

 Os desafios ao bom-senso vão muito além. Na lista de compras, consta um aparelho que realiza, entre outros exames complexos, um teste de gravidez conhecido por Beta-HCG. Trata-se de um procedimento importante para uma paciente hospitalizada, mas que não faz parte dos serviços de emergência. A lista oficial inclui também a aquisição de focos cirúrgicos, o nome de equipamentos de iluminação próprios para salas de operação — não para uma ambulância. Total dessa fatura: 946 231 reais. A mesma falta de critério se aplica às ampolas PCR indicadas para detectar infecções em estágio avançado. Elas nada têm a ver com o resgate de pacientes. Na contabilidade oficial aparecem ainda gastos com a lavagem de roupas do Hospital de Santa Maria. Aqui, estamos diante de uma dupla irregularidade. Primeiro, não compete ao Samu custear as despesas de um hospital. Em segundo lugar, os lençóis usados nas ambulâncias são descartáveis. Foram relacionadas também 6 314 bolsas de colostomia, usadas para armazenar fezes ou urina de pacientes que passaram por delicada cirurgia no aparelho digestivo. Mais uma vez, não se trata de procedimento adequado para ser feito em um carro em movimento. 
 Base do Paranoá: construída com doações da comunidade (Foto: Michael Melo)

Criado em 2003 pelo governo federal com verbas do Sistema Único de Saúde (SUS), o Samu passou a funcionar no DF em 2005. Foi planejado como um programa de excelência. Mas, ao mesmo tempo em que o governo daqui prevê gastos de alguns milhões em compras equivocadas, os socorristas de Ceilândia fazem vaquinha para adquirir material de limpeza e de manutenção do posto onde ficam as ambulâncias na região. No Paranoá, a unidade foi construída com dinheiro doado por comerciantes locais. E a fiação elétrica foi financiada pelos médicos e enfermeiros do programa.

No total, dos 23,4 milhões de reais empenhados para o Samu no Distrito Federal em 2013, praticamente 8 milhões se referem a itens estranhos ao serviço. É difícil acreditar, mas todos eles estão detalhados em documentos da Secretaria de Saúde. Esses papéis burocráticos, chamados notas de empenho, são gerados no sistema de controle de gastos todas as vezes em que o governo assume o compromisso de pagar um fornecedor. Neles estão discriminados quem vendeu o produto ou serviço, quanto custou e qual a fonte dos recursos.

A lista de empenhos feita pela Secretaria de Saúde chamou a atenção de um grupo de médicos do programa. Como se trata de verba federal, no ano passado alguns desses profissionais fizeram uma denúncia à Controladoria-Geral da União (CGU). O órgão de controle abriu um processo para analisar o caso. 
 
 Base de Ceilândia: lista de servidores que fazem vaquinha para manter o local  (Foto: Michael Mello)
Flagrado na esperteza, o governo recuou. Em novembro, antes que a CGU se manifestasse, a Secretaria de Saúde mandou cancelar o empenho de compra dos testes de gravidez. Em seguida, desistiu dos focos cirúrgicos. Os dois pagamentos reservados para a lavanderia de roupa hospitalar foram igualmente anulados. Segundo o secretário de Saúde, Rafael Barbosa, nesse caso foi cometido um “erro material”. Um funcionário teria colado nessa nota de empenho a descrição de um serviço prestado por uma concessionária de carros, sem nenhuma relação com os resgates. Quanto a testes de gravidez, insumos para exames sofisticados e focos cirúrgicos, a secretaria diz que previu os gastos porque pretendia “incrementar” o atendimento. Os itens seriam acomodados nas “salas vermelhas” e “de trauma”. Inventados pelo governo do Distrito Federal, esses espaços são uma espécie de extensão das ambulâncias. Como acontece com nossas tesourinhas, só existem aqui. Mas o argumento não colou, e essa despesa também foi expurgada.

Em relação aos gastos feitos em Ceilândia por servidores para adquirir material de limpeza e de manutenção, a gerência do Samu diz que não pode impedir as pessoas de tomar esse tipo de atitude. No caso da construção do posto do Paranoá, também arcada por particulares, a explicação é que o dinheiro do governo federal não pode ser investido em obras, apenas no custeio dos serviços. Aqui cabe outra pergunta: não seria o caso, então, de o governo do Distrito Federal pagar a construção da unidade de atendimento com as próprias verbas? Assim, não precisaria recorrer ao bolso de seus funcionários ou de empresários. 

De todos os gastos estranhos, o único ainda não cancelado foi o das bolsas de colostomia. Para tomar a decisão, talvez seja o caso de chamar uma junta médica. 


Notas de empenho

A Secretaria de Saúde reservou 900 000 reais de dinheiro do Samu para custear curso de inglês aos servidores do serviço de emergência. O intensivo duraria oito meses e foi justificado como uma necessidade para a Copa. O documento tem data de dezembro de 2013 e até a semana passada o curso não havia sido iniciado. Segundo o GDF, o curso foi cancelado há poucos dias por falta de quórum. A aulas seriam para 800 pessoas, mas só quarenta teriam se inscrevido.  Confira documento:

Também com o dinheiro federal reservado para o Samu, o governo local pretendia comprar insumos para equipamento que realiza exames complexos, incompatíveis com a natureza do socorro prestado dentro das ambulâncias. Entre os itens, há teste de gravidez. A nota de empenho no valor de 4,4 milhões de reais acabou cancelada, após a Controladoria-Geral da União ter acesso aos documentos indicando a operação. Antes da conclusão da CGU, a Secretaria de Saúde se antecipou e voltou atrás. Confira documento:

 
Um total de 733 330 reais haviam sido reservado do orçamento do Samu para a compra de focos cirúrgicos e equipamentos típicos do ambiente hospitalar e não de ambulâncias em movimento ou mesmo de salas de apoio desse serviço de socorro. A Secretaria de Saúde também cancelou o empenho desse dinheiro após o início da apuração da CGU. Confira documento:
Nota de empenho de julho de 2013 demonstra que o Fundo de Saúde do DF reservou 946 231,42 do Samu para a compra de bolsas de colostomia, usadas em pacientes que perderam parte do aparelho digestivo. Esse é um procedimento cirúrgico delicado, nem um pouco adequado para as ocasiões de resgate. Confira documento:
Dois documentos oficiais (as notas de empenho 02691 e a 02692), obtidos do sistema que controla os gastos do governo local, indicam a reserva de 550 000 e 368 860,40 , respectivamente, de recursos do Samu para lavar a roupa suja do Hospital de Santa Maria. O nome do fornecedor, no entanto, é a Barros Automóveis Ltda. Segundo a Secretaria de Saúde, trata-se de “um erro material” e o pagamento não teria ocorrido. Confira documento:
 
Fonte: LILIAN TAHAN Blog Grande Angular Revista Veja

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