segunda-feira, 23 de setembro de 2013

'Domínio do fato não convive com in dubio pro reo'

A teoria do domínio do fato não convive com o princípio do in dubio pro reo. Esse é o entendimento do advogado e constitucionalista Ives Gandra Martins.

Em entrevista à colunista da Folha de São Paulo Mônica Bergamo, ele afirmou que, na Ação Penal 470, o processo do mensalão, o domínio do fato, teoria que segundo o jurista não é usada nem na Alemanha, onde surgiu, serviu para condenar o ex-ministro da Casa Civil da José Dirceu sem provas. "Se eu tiver a prova material do crime, eu não preciso da teoria do domínio do fato [para condenar]", disse.

Para Ives, a adoção da teoria traz insegurança jurídica, pois permite a condenação de inocentes com base apenas em presunções e indícios, colocando em risco, por exemplo, profissionais em posição de comando nas empresas. Leia a entrevista: ...
 

Folha — O senhor já falou que o julgamento teve um lado bom e um lado ruim. Vamos começar pelo primeiro.
Ives Gandra Martins — O povo tem um desconforto enorme. Acha que todos os políticos são corruptos e que a impunidade reina em todas as esferas de governo. O mensalão como que abriu uma janela em um ambiente fechado para entrar o ar novo, em um novo país em que haveria a punição dos que praticam crimes. Esse é o lado indiscutivelmente positivo. Do ponto de vista jurídico, eu não aceito a teoria do domínio do fato.
 

Por quê?
Ives Gandra Martins — Com ela, eu passo a trabalhar com indícios e presunções. Eu não busco a verdade material. Você tem pessoas que trabalham com você. Uma delas comete um crime e o atribui a você. E você não sabe de nada. Não há nenhuma prova senão o depoimento dela — e basta um só depoimento. Como você é a chefe dela, pela teoria do domínio do fato, está condenada, você deveria saber. Todos os executivos brasileiros correm agora esse risco. É uma insegurança jurídica monumental. Como um velho advogado, com 56 anos de advocacia, isso me preocupa. A teoria que sempre prevaleceu no Supremo foi a do "in dubio pro reo" [a dúvida favorece o réu].
 

Folha — Houve uma mudança nesse julgamento?
Ives Gandra Martins — O domínio do fato é novidade absoluta no Supremo. Nunca houve essa teoria. Foi inventada, tiraram de um autor alemão, mas também na Alemanha ela não é aplicada. E foi com base nela que condenaram José Dirceu como chefe de quadrilha [do mensalão]. Aliás, pela teoria do domínio do fato, o maior beneficiário era o presidente Lula, o que vale dizer que se trouxe a teoria pela metade.
 

Folha — O domínio do fato e o "in dubio pro reo" são excludentes?
Ives Gandra Martins — Não há possibilidade de convivência. Se eu tiver a prova material do crime, eu não preciso da teoria do domínio do fato [para condenar].
 

Folha — E no caso do mensalão?
Ives Gandra Martins — Eu li todo o processo sobre o José Dirceu, ele me mandou. Nós nos conhecemos desde os tempos em que debatíamos no programa do Ferreira Netto na TV [na década de 1980]. Eu me dou bem com o Zé, apesar de termos divergido sempre e muito. Não há provas contra ele. Nos embargos infringentes, o Dirceu dificilmente vai ser condenado pelo crime de quadrilha.
 

Folha — O "in dubio pro reo" não serviu historicamente para justificar a impunidade?
Ives Gandra Martins — Facilita a impunidade se você não conseguir provar, indiscutivelmente. O Ministério Público e a polícia têm que ter solidez na acusação. É mais difícil. Mas eles têm instrumentos para isso. Agora, num regime democrático, evita muitas injustiças diante do poder. A Constituição assegura a ampla defesa -ampla é adjetivo de uma densidade impressionante. Todos pensam que o processo penal é a defesa da sociedade. Não. Ele objetiva fundamentalmente a defesa do acusado.


Folha — E a sociedade?
Ives Gandra Martins — A sociedade já está se defendendo tendo todo o seu aparelho para condenar. O que nós temos que ter no processo democrático é o direito do acusado de se defender. Ou a sociedade faria justiça pelas próprias mãos.
 

Folha — Discutiu-se muito nos últimos dias sobre o clamor popular e a pressão da mídia sobre o STF. O que pensa disso?
Ives Gandra Martins — O ministro Marco Aurélio [Mello] deu a entender, no voto dele [contra os embargos infringentes], que houve essa pressão. Mas o próprio Marco Aurélio nunca deu atenção à mídia. O [ministro] Gilmar Mendes nunca deu atenção à mídia, sempre votou como quis.
 

Eles estão preocupados, na verdade, com a reação da sociedade. Nesse caso se discute pela primeira vez no Brasil, em profundidade, se os políticos desonestos devem ou não ser punidos. O fato de ter juntado 40 réus e se transformado num caso político tornou o julgamento paradigmático: vamos ou não entrar em uma nova era? E o Supremo sentiu o peso da decisão. Tudo isso influenciou para a adoção da teoria do domínio do fato.
 

Folha — Algum ministro pode ter votado pressionado?
Ives Gandra Martins — Normalmente, eles não deveriam. Eu não saberia dizer. Teria que perguntar a cada um. É possível. Eu diria que indiscutivelmente, graças à televisão, o Supremo foi colocado numa posição de muitas vezes representar tudo o que a sociedade quer ou o que ela não quer. Eles estão na verdade é na berlinda. A televisão põe o Supremo na berlinda. Mas eu creio que cada um deles decidiu de acordo com as suas convicções pessoais, em que pode ter entrado inclusive convicções também de natureza política.
 

Folha — Foi um julgamento político?
Ives Gandra Martins — Pode ter alguma conotação política. Aliás o Marco Aurélio deu bem essa conotação. E o Gilmar também. Disse que esse é um caso que abala a estrutura da política. Os tribunais do mundo inteiro são cortes políticas também, no sentido de manter a estabilidade das instituições. A função da Suprema Corte é menos fazer justiça e mais dar essa estabilidade. Todos os ministros têm suas posições, políticas inclusive.
 

Folha — Isso conta na hora em que eles vão julgar?
Ives Gandra Martins — Conta. Como nos EUA conta. Mas, na prática, os ministros estão sempre acobertados pelo direito. São todos grandes juristas.
 

Folha — Como o senhor vê a atuação do ministro Ricardo Lewandowski, relator do caso?
Ives Gandra Martins — Ele ficou exatamente no direito e foi sacrificado por isso na população. Mas foi mantendo a postura, com tranquilidade e integridade. Na comunidade jurídica, continua bem visto, como um homem com a coragem de ter enfrentado tudo sozinho.
 

Folha — E Joaquim Barbosa?
Ives Gandra Martins — É extremamente culto. No tribunal, é duro e às vezes indelicado com os colegas. Até o governo Lula, os ministros tinham debates duros, mas extremamente respeitosos. Agora, não. Mudou um pouco o estilo. Houve uma mudança de perfil.
 

Folha — Em que sentido?
Ives Gandra Martins — Sempre houve, em outros governos, um intervalo de três a quatro anos entre a nomeação dos ministros. Os novos se adaptavam à tradição do Supremo. Na era Lula, nove se aposentaram e foram substituídos. A mudança foi rápida. O Supremo tinha uma tradição que era seguida. Agora, são 11 unidades decidindo individualmente.
 

Folha — E que tradição foi quebrada?
Ives Gandra Martins — A tradição, por exemplo, de nunca invadir as competências [de outro poder] não existe mais. O STF virou um legislador ativo. Pelo artigo 49, inciso 11, da Constituição, Congresso pode anular decisões do Supremo. E, se houver um conflito entre os poderes, o Congresso pode chamar as Forças Armadas. É um risco que tem que ser evitado. Pela tradição, num julgamento como o do mensalão, eles julgariam em função do "in dubio pro reo". Pode ser que reflua e que o Supremo volte a ser como era antigamente. É possível que, para outros [julgamentos], voltem a adotar a teoria do "in dubio pro reo".
 

Folha — Por que o senhor acha isso?
Ives Gandra Martins — Porque a teoria do domínio do fato traz insegurança para todo mundo.


Fonte: Revista Consultor Jurídico

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