domingo, 24 de novembro de 2013

Patrimônio em jogo

O GDF retira pontos polêmicos do PPCUB para votação na Câmara Legislativa, mas o projeto desperta soluções que ainda podem descaracterizar o cenário da capital

Um leão alado com a cabeça de mulher cruza o seu caminho e lhe impõe um enigma sob pena de terrível castigo: “Decifra-me ou devoro-te”. É assim, como a esfinge da mitologia grega, de aspecto assustador e com previsões ameaçadoras, que o Plano de Preservação do Conjunto Urbanístico de Brasília (PPCUB) se apresentou aos moradores da capital. Gestado durante cinco anos em gabinetes oficiais, mas só nas últimas semanas efetivamente debatido por arquitetos, urbanistas, parlamentares e pelo público em geral, o projeto criado com a justificativa de proteger Brasília mostrou-se, na verdade, como um bicho a devorá-la. Por isso, VEJA BRASÍLIA une-se ao esforço de decodificar a proposta e apontar a quem interessam as alterações previstas. ...

Brasília já nasceu com a aura de obra de arte e, antes de completar três décadas de existência, foi reconhecida como Patrimônio Mundial pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Com o título veio o compromisso de preservação das características principais da capital. Agora, aos 53 anos, a cidade está diante do maior desafio à sua condição de emblema da arquitetura moderna. Seu desenho original pode vir a ser desfigurado por decisões políticas tomadas às pressas.

Enviado em regime de urgência para votação na Câmara Legislativa, o PPCUB — com 118 páginas e 72 planilhas apresentadas em 795 folhas — propôs solucionar parte da demanda natural de crescimento da cidade com intervenções em áreas cruciais. As notícias sobre as mudanças foram recebidas com tanta resistência que o Poder Executivo foi obrigado a dar um passo atrás. Na última quarta (20), o governador Agnelo Queiroz (PT) comprometeu-se a rever a discussão das medidas mais polêmicas.

Em uma estratégia muito usada pela administração pública, o GDF apresentou um robusto pacote de intervenções, sabendo que sofreria resistência por parte da sociedade em vários pontos. Como na história do bode na sala, ao retirar os itens mais incômodos, deixou a impressão de alívio. Com esse movimento, o Executivo conseguirá votar ainda neste ano o maior conjunto de modificações feitas até hoje no projeto inicial de Brasília. E nada impede que, em breve, os termos mais questionáveis voltem à pauta.

Algumas das propostas do PPCUB atingem o coração da capital, justamente onde ficam os 112,5 quilômetros quadrados de área tombada pela Unesco. Vale fazer um exercício de futurologia. Quando passar pelas primeiras quadras da W3, olhe para os lados e imagine que onde hoje ficam os tradicionais hotéis com até três andares devem surgir espigões de dez pavimentos, com a altura de 35 metros. A menos de 5 quilômetros desses hotéis, em frente ao memorial de onde acena JK, uma extensa área verde poderia tornar-se até piso de shopping. No plano urbanístico, lotes de até 20 000 metros quadrados desse pedaço da cidade abrigariam museus e bibliotecas. Mas, em uma das brechas mais perigosas do projeto, o documento também permitiria no local a criação de estabelecimentos comerciais, como bares, restaurantes e polo de treinamento de pessoal. De tão esdrúxula, a ideia entrou na lista das que tiveram o debate adiado. Um pouco depois do Eixo Monumental, atrás da Rodoferroviária, estava previsto algo igualmente impactante na paisagem: uma nova cidade, colada no Parque Nacional de Brasília. A depender de sua extensão, poderia emendar a mancha urbana do Plano Piloto com Taguatinga, passando pela Estrutural. A medida também carece, admitiu o governo, de mais discussão.

Bem próximo da Esplanada, uma das principais referências para a especulação imobiliária no Distrito Federal, o plano de preservação deu outro sinal verde, desta vez para a criação de um novo endereço no Sudoeste, a quadra 500, com 22 prédios. Isso significaria mais 4 000 moradores e outros 1 000 carros nas vias já congestionadas dessa região administrativa. Um dia pertencente à Marinha, o terreno foi vendido pela Antares Engenharia para a Oeste Sul. O empreendimento é da família do magnata dos transportes Nenê Constantino, que cumpre medida cautelar de recolhimento domiciliar por suposto envolvimento em homicídios. Sua investida no Sudoeste está embargada pela Justiça. Segundo o Ministério Público do DF, o adensamento previsto no local é um exagero em relação ao projeto inicial. Outra arbitrariedade, portanto, que será rediscutida.

As alterações antes previstas para as margens do Lago Paranoá são uma prova de que o PPCUB não poupava endereço nobre na cidade. Se aprovado na íntegra, o novo plano descaracterizaria boa parte do Setor de Clubes. Um total de 218 terrenos poderia ser desmembrado em lotes a partir de 15  000 metros quadrados. Hoje essas áreas têm entre 20 000 e 330 000 metros quadrados. No caso de dez glebas reservadas para clubes, o plano autorizaria a construção de complexos hoteleiros. A medida beneficiaria, por exemplo, a Academia de Tênis, a Liga Brasileira de Radioamadores do DF (Labre-DF) e os clubes de Caça e Pesca, das Nações, da Imprensa, Motonáutica e Aeronáutica.
 

Todas essas medidas podem ser observadas sob o prisma do desenvolvimento. Mais opções de moradia, de hospedagem, de serviços e de comércio apontam para uma cidade em evolução. Porém, há que fazer uma pergunta elementar. Brasília, uma cidade que, para citar apenas um exemplo, caminha em direção ao colapso no trânsito, está preparada para crescer em suas áreas centrais? “Esse projeto não resolve nenhum dos problemas atuais da cidade, foi feito sem limites claros e promove um crescimento desordenado”, considera Paulo Paranhos, presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil no DF.

O debate com o grande público começou há pouco. Até agora, não foi possível enxergar como as modificações que descaracterizam uma cidade tombada podem melhorar a vida da população. Sabe-se, com certeza, que essas alterações interessam à iniciativa privada. Para alguns empresários, significam multiplicação de lucros. Para outros, sinal de prejuízo. Alguns dos pequenos hotéis com chance de agregar novos andares, por exemplo, pertencem às famílias Bittar, Naoum, Sarkis, Monfarrege e Kouzak, proprietárias de grandes empreendimentos imobiliários no DF. “O governo pode usar qualquer argumento, menos o da necessidade”, diz Helder Carneiro, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Hotéis do DF. Carneiro afirma que, até a Copa do Mundo, haverá mais 5 000 suítes disponíveis na cidade referentes a projetos já em andamento. Ele informa que existem onze terrenos ociosos nos setores hoteleiros. “Por que o governo não obriga os empresários a construir nesses locais com o IPTU progressivo em vez de aumentar o gabarito dos hotéis menores?”, questiona Carneiro. Ele faz parte da turma para quem a mudança de gabarito representa aumento na concorrência e, portanto, redução nos dividendos. Não está sozinho. Paulo Octávio, um dos maiores empresários do ramo na cidade, também é crítico. Entre os dois lados da iniciativa privada há um ponto em comum: ambos concordam que a Companhia Imobiliária de Brasília (Terracap) sairá mais capitalizada desse processo, pois é dona de boa parte dos terrenos que serão fatiados e revendidos.

O secretário de Habitação e Desenvolvimento Urbano do DF, deputado federal Geraldo Magela (PT), tornou-se para-raios das críticas ao PPCUB. Em defesa do governo e da aprovação do novo plano urbanístico, Magela nega que o projeto seja de adensamento, afirma que a proposta não cria nenhuma nova área no Plano Piloto e diz que é preciso coragem para fazer intervenções necessárias à melhoria da qualidade de vida dos brasilienses. “Aos que nos criticam com o fato de que queremos ocupar a orla do lago, afirmo: é isso mesmo. Propomos criar uma área de lazer, democratizar o espaço, mas respeitando todos as regras urbanísticas da cidade”, alega.
 

Influente nos escalões federais — ele se prepara para a assumir a secretaria-geral do PT nacional —, Magela diz ter respaldo do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) para a aprovação do PPCUB. Mas, diante das reações contrárias ao plano, comandou o recuo nas propostas mais polêmicas. “Se pudermos melhorar a redação de alguns itens, nós o faremos. Porém, é preciso que, antes, as vozes contrárias façam sugestões melhores”, provoca.

Diretora de patrimônio cultural do Instituto Histórico e Geográfico do DF, Vera Ramos é a principal representante da cruzada contra o projeto. “Como falar em sugestão melhor? A melhor de todas as propostas foi aprovada há 56 anos e assinada por Lucio Costa”, rebate Vera. Para a arquiteta e urbanista, o poder público tem o papel de preservar as escalas que originaram Brasília. A mais vulnerável delas, de acordo com os estudiosos, seria a bucólica. Segundo esse conceito, a capital foi construída para resguardar a linha do horizonte e ter espaços de respiro, com áreas verdes.

O debate, que começou timidamente na Câmara Legislativa, ganhou notoriedade pela voz dos especialistas e acabou reverberando no Congresso Nacional. Rodrigo Rollemberg, senador do DF pelo PSB, participou na última terça (19) de uma reunião com representantes do Iphan para cobrar uma atitude. “O PPCUB favorece a especulação e compromete a qualidade de vida dos moradores. Deve ser impedido”, afirma o político. No plenário da Câmara Federal, o deputado José Antônio Reguffe (PDT) foi o primeiro a denunciar o perigo das intenções do GDF. É bom lembrar, no entanto, que a apreciação e a aprovação do PPCUB se dão na esfera da Câmara Legislativa, onde o governo tem o apoio da maioria dos distritais.

Ao adiar a análise dos itens mais escandalosos, o Executivo tenta aprovar ainda neste ano outros tantos pontos igualmente questionáveis. Permanecem, por exemplo, a permissão para alteração no uso de lotes em entrequadras, a liberação de mais terrenos para construções em áreas públicas e a autorização para novos puxadinhos nos comércios locais. Nos debates das últimas semanas, o secretário Magela disse contar também com a anuência da Unesco para as mudanças. Não é bem assim. A coordenadora de cultura do organismo internacional, Patrícia Reis, adverte que todas as propostas de intervenção sobre a área protegida da capital federal ainda devem ser submetidas à avaliação do órgão. “A nossa preocupação não está na aprovação urgente do PPCUB, mas na consolidação de um texto suficientemente claro e que contemple medidas objetivas para a proteção do conjunto urbanístico de Brasília.” Resta vigiar para que nossa cidade tome o melhor caminho diante de sua mais polêmica encruzilhada.

Discussão na sacada

Projeto impede a integração das varandas a outros cômodos nos apartamentos
 
A arquiteta Marcela Passamani em um apartamento na 205 Norte: “Transformação de um local ocioso em um espaço social”  (Foto: Roberto Castro)

Muitos proprietários de apartamentos transformam as varandas em extensões de outros ambientes, como a sala de estar. Para isso, erguem paredes e janelas de vidro em torno da sacada. O PPCUB propõe acabar com esse costume. Na concepção do plano, a prática descaracteriza o desenho original das superquadras. A arquiteta Marcela Passamani, que já apresentou projetos em oito edições da Casa Cor, pensa diferente. “Na maior parte das vezes, os edifícios do Plano Piloto são muito próximos uns aos outros, o que tira qualquer possibilidade de o morador usar a área para apreciar a vista”, afirma. “Fechar a varanda é nada mais do que a transformação de um local ocioso em um espaço social.” O discurso é reforçado pela arquiteta Denise Zuba, que tem mais de trinta anos de experiência na área e já assinou prédios como o do restaurante Gazebo. “A fachada pode até ficar feia, mas de maneira nenhuma descaracteriza a quadra”, diz Denise. Na opinião das duas arquitetas, esse é um assunto que deve ser resolvido entre os moradores dos prédios, sem interferência dos órgãos do governo.   

Crescimento para o sul

Área no entorno da DF-140 é hoje o principal vetor de adensamento da capital federal
 
 
O executivo Geraldo Vieira no terreno onde o grupo Alphaville pretende erguer uma cidade (abaixo do executivo): “Em duas décadas, seremos endereço para 200 000 pessoas”  (Foto: Roberto Castro)

Nem só no centro e para o alto está apontado o crescimento do Distrito Federal. Em paralelo ao PPCUB, a Secretaria de Habitação desenvolve um plano para a ocupação das regiões Sul e Sudeste do quadrilátero. Cortada pela DF-140, a área tem 170 milhões de metros quadrados e é considerada o último grande vetor de expansão da capital (veja o mapa abaixo). Com base em projeções do IBGE, o governo estima que em três décadas o local, hoje pouco habitado, agregará 951 000 pessoas. Quase 80% dessa fatia do DF pertence a empresas privadas. Há, ao todo, 350 proprietários de terras no local. Desses, 48 já encaminharam processos de parcelamento ao governo, que na segunda (25) reunirá os donos de empreendimentos para apresentar diretrizes sobre o adensamento do setor. O maior terreno dessa região é a Fazenda Santa Prisca. A propriedade pertence ao ex-senador e empresário Luiz Estevão, condenado por desvios nas obras do TRT de São Paulo. Em suas glebas no Eixo Sul do DF caberiam cidades do tamanho de Ceilândia e Taguatinga juntas. O empreendimento que Estevão pretende construir no setor terá 22 milhões de metros quadrados e poderá abrigar até 150 000 pessoas. Tal endereço é vizinho de propriedades da Via Engenharia, de Fernando Queiroz, da JC Gontijo, de José Celso Gontijo, e da Dhama, que tem como sócios nesse empreendimento Marcos Pereira Lombardi, o Marcola, e o senador Gim Argello (PTB-DF). As empresas do grupo Jereissati também têm terrenos no local e pretendem construir um shopping às margens da DF-140, que será duplicada para incentivar o crescimento da área. Outra grife do setor imobiliário que aposta na região como rota do crescimento de Brasília é a Alphaville. A empresa responsável por condomínios de alto padrão aposta que em duas décadas terá, a vinte minutos de Brasília, um espelho de seu mais bem-sucedido projeto, o complexo de Barueri (SP). Pimenta da Veiga, ex-ministro das Comunicações e pré-candidato ao governo de Minas Gerais, é um dos que vão se beneficiar com o projeto. Dono de uma fazenda em que o acesso foi considerado fundamental pela Alphaville, ele acabou se associando ao projeto que engloba terras de Goiás e do DF. “A região tem tudo para se desenvolver. Em alguns anos seremos endereço para 200 000 pessoas”, diz Geraldo Vieira, um dos executivos à frente da Alphaville vizinha à capital.   

A nova rota da especulação

Localizada nas regiões Sul e Sudeste do DF, esta área com 170 milhões de metros quadrados foi fatiada entre 350 empresários. Os principais loteamentos urbanos desse grupo estão listados abaixo.
 
Fonte: Estudo para Elaboração de Diretrizes Urbanísticas Região Sul/Sudeste DF-140

Fonte: Lilian Tahan e Paulo Lannes - Revista Veja Brasilia

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